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O corpo como território de memórias: registros somáticos desde o ventre materno até a vida adulta

Atualizado: há 11 horas

O corpo é um arquivo: escreve, apaga, reescreve. Em suas dobras vivem histórias que nenhuma ficha clínica chega a decifrar.



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O corpo como primeiro texto


Digo nas minhas palestras que o corpo registra tudo. Não apenas o que vimos; antes mesmo disso, registra o que fomos; no abraço materno, no silêncio que nos atravessou, nas descargas de emoção que atravessaram o corpo que nos gerava. Essa afirmação, que nasce da clínica e da escuta, encontra hoje um terreno fértil nas descobertas das neurociências, da psicologia do desenvolvimento e da teoria psicanalítica: o corpo guarda memórias implícitas que se formam desde o ventre materno e se estendem por toda a vida adulta.


Falar do corpo como território de memórias é reconhecer que não chegamos à existência com folhas em branco. O ventre é um primeiro mundo; um lugar de ritmos, sons, substâncias e afeto. É nele que se desenha, em traços iniciais, uma arquitetura de regulação afetiva e resposta ao estresse; é nele que se moldam padrões que depois reaparecem na forma de tensões, sintomas e modos de sentir. Este artigo propõe uma aproximação entre a linguagem poética da clínica e as evidências científicas contemporâneas, para mostrar por que aquilo que desde as palestras venho dizendo tem lastro e merece ser escrito com rigor e cuidado.


As marcas do ventre materno: biologia, afetos e transmissão


O desenvolvimento fetal não ocorre num vácuo. Desde o início da formação do sistema nervoso, o embrião e o feto respondem a estímulos químicos, térmicos, sonoros e afetivos. Já nas primeiras semanas, circuitos neurais se organizam; mais adiante, movimentos, ritmos cardíacos e padrões de sono do feto são influenciados pelo ambiente intrauterino. Quando a gestação se dá num contexto de bem-estar relativo, essas experiências podem favorecer um desenvolvimento regulado. Quando a gestação ocorre em meio a estresse persistente, ansiedade ou depressão materna, os sinais bioquímicos (ex.: níveis elevados de cortisol e catecolaminas) atravessam a placenta e moldam a experiência sensorial e neuroendócrina do feto; uma transmissão que altera a “primeira letra” do alfabeto afetivo desse corpo em formação. Estudos revisados mostram que eventos estressantes maternos e sintomas de ansiedade/depressão durante a gestação estão associados a alterações no desenvolvimento cerebral e do comportamento nos descendentes, com risco aumentado para dificuldades emocionais e cognitivas na infância e além.



É importante sublinhar dois pontos: primeiro, a transmissão não determina um destino imutável; ela funda uma predisposição, um conjunto de sensibilidades que poderão se manifestar sob determinadas condições. Segundo, as vias dessa transmissão são múltiplas; bioquímica (hormonal), epigenética (marcas sobre a expressão gênica), e relacional (o modo como a mãe se relaciona com seu corpo e com aqueles que a cercam). Dados recentes continuam a demonstrar associações entre níveis maternos de cortisol, alterações no metabolismo placentário e marcadores do desenvolvimento fetal, reforçando a hipótese de que a gestação é uma janela sensível para a programação do sistema de resposta ao estresse.


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Nascimento: desintegração necessária e reorganização


Descrever o nascimento como uma “desintegração” pode soar forte, mas é justamente essa intensidade que explica porque o evento exige reorganização. No útero, o feto vive um ritmo contínuo: batidas cardíacas, movimentos amparados, temperatura constante. O parto rompe essa continuidade; luz, frio, novos sons, restrição respiratória e a separação física do corpo materno. Winnicott falou da necessidade do holding (do sustento físico-emocional) e da função materna que permite ao bebê, aos poucos, integrar a experiência de ausência e presença. A presença suficientemente boa ensina o bebê a tolerar a dissociação do abraço materno; e, assim, a construir; passo a passo; uma sensação de continuidade interna. Obras clássicas e estudos contemporâneos da psicanálise enfatizam que o nascimento é o primeiro grande teste da capacidade de reorganização do corpo-psique.


Daniel Stern, em sua obra sobre o mundo interpessoal do infante, descreve como o bebê gradualmente “costura” sensações em uma experiência coerente de si, desenvolvendo sentidos emergentes do self que se aprofundam ao longo do primeiro ano. Esses processos iniciais; regulação coletiva, acolhimento e suportabilidade das ausências; têm efeitos duradouros na maneira como o sujeito vai responder à frustração, ao luto e ao estresse na vida adulta.


Memória implícita e o corpo que guarda sem linguagem


Quando falamos que “o corpo lembra”, estamos nos referindo, em parte, ao que a ciência denomina memória implícita: formas de memória que não passam pelo relato verbal, mas se aninham em circuitos límbicos, no tronco cerebral e nos padrões autonômicos. Essas memórias são acionadas por sensações, cheiros, ritmo respiratório, postura; e elas influenciam reações emocionais antes mesmo da tomada de consciência. Revisões recentes sobre “body memory” consolidam a ideia de que experiências precoces e traumas podem se manifestar como padrões somáticos repetidos, dor crônica, alterações autonômicas e respostas emocionais desproporcionais. Essas manifestações não são “só” psicossomáticas no sentido popular; têm substratos neurobiológicos claramente investigáveis.


Bessel van der Kolk, numa linguagem que aproximou clínica e pesquisa para um público mais amplo, destacou como o trauma pode ficar aprisionado no corpo; em tensões, hipervigilância e memórias não-verbalizadas; e defendeu abordagens de tratamento que incluam processos corporais (yoga, movimentos, práticas sensoriais) para “reassociar” o corpo e a narrativa. Embora o campo esteja em contínuo debate, a evidência aponta para a utilidade de intervenções que integrem corpo e mente na restauração da coesão psíquica.


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Vínculo, regulação afetiva e a neurobiologia do relacionamento


As primeiras relações constituem mais do que cuidados físicos: são reguladoras de estados internos. A teoria do apego, as contribuições de Schore sobre o desenvolvimento do hemisfério direito e as formulações polivagais de Stephen Porges convergem para a noção de que a co-regulação (a capacidade do cuidador de sintonizar e modular o estado do bebê) é central para a maturação da regulação afetiva. O sistema nervoso autônomo do bebê aprende a responder ao mundo graças à presença relacional que acalma, organiza e devolve segurança. Quando essa co-regulação falha; por ausência, por disfunção afetiva ou por estresse materno persistente; o resultado pode ser uma maior sensibilidade ao estresse e possíveis alterações na capacidade de autorregulação ao longo da vida. Estudos contemporâneos e revisões teóricas mostram como essas interações bi-direcionais entre cérebro e relacionamento moldam trajetórias emocionais.


Stephen Porges e a teoria polivagal explicam, por exemplo, como a sensação de segurança está correlacionada a circuitos vagais que suportam a socialidade; quando esses circuitos ficam em risco, o corpo recorre a estratégias defensivas (hipervigilância, imobilização) que se manifestam somaticamente. Essa linguagem neurofisiológica fornece um mapa para entender por que a presença cuidadosa (o olhar, o toque, o tom de voz) tem efeitos fisiológicos imediatos no bebê; e por que a ausência repetida produz marcas.


Epigenética e a marca química da experiência


Além das vias imediatas; hormônios e regulação autonômica; existe outro caminho pelo qual o ambiente pré-natal deixa rastro: a epigenética. Pesquisas em epigenética perinatal investigam como o estresse materno pode modificar padrões de metilação do DNA e a expressão gênica em tecidos fetais, potencialmente alterando trajetórias de desenvolvimento. Essas modificações não são necessariamente permanentes e podem ser sensíveis a experiências posteriores, mas fornecem um mecanismo plausível para a “memória” biológica das condições gestacionais. Artigos recentes demonstram associações entre percepções de estresse materno, alterações epigenéticas no feto e marcadores comportamentais na infância; reforçando a ideia de que o começo da vida tem efeitos em cascata.


terapia

A clínica do corpo: como as marcas precoces reaparecem


Na prática clínica, encontramos adultos que não conseguem nomear a origem das suas angústias, mas cujo corpo reage com sinais intensos: palpitações, tensão crônica, dores sem causa médica aparente, hipervigilância. Muitas dessas manifestações podem ser vistas como ecos de memórias implícitas; reativações de padrões de regulação primitivos. A literatura sobre “body memory” e trauma oferece modelos para entender esses fenômenos: são lembranças que se fazem pelo corpo, por vezes sem narrativa, e que exigem estratégias de tratamento que integrem experiência sensorial, relações significativas e linguagem simbólica.


Para a psicanálise, a palavra é instrumento de reorganização. Para abordagens somáticas, o movimento e a experiência sensorial são caminhos de integração. A prática clínica contemporânea tende a reconhecer que os três caminhos; relação, palavra, corpo; são interdependentes na tarefa de reescrever memórias que aprisionam o sujeito em padrões repetitivos.


Reinscrição possível: práticas clínicas e comunitárias


Se o corpo lembra, também pode aprender a lembrar de outro modo. A reinscrição das memórias corpóricas passa por três eixos complementares:

  1. Relação segura e co-regulação: intervenções que fortalecem vínculos seguros (na família, na terapia, em grupos) oferecem novos modelos de regulação afetiva. Programas de suporte perinatal que cuidam da saúde mental materna reduzem riscos para a criança; a promoção de ambientes de cuidado é, portanto, preventiva e reparadora.

  2. Intervenções corpo-cerebro: práticas que envolvem respiração, movimento consciente, terapia somática e atividades corporais (yoga, dança, exercícios de autorregulação) podem auxiliar na reorganização autonômica e no processamento de memórias implícitas. Ao readquirir sensação de segurança pelo corpo, o sujeito amplia a capacidade de simbolização e narrativa. Van der Kolk e outros autores têm sistematizado a utilidade clínica dessas abordagens no tratamento do trauma.

  3. Narrativa e simbolização: a palavra; na terapia, na escrita, nas artes; cria a ponte entre o que o corpo repete e o que a mente pode nomear. Quando a experiência sensorial encontra a linguagem, há a possibilidade de reorganização e integração. Daniel Stern e a psicoterapia do desenvolvimento enfatizam que a narrativa é co-construída nas relações e permite ao sujeito revisitar e ressignificar as marcas iniciais.


longevidade

O olhar gerontológico: memória corporal e longevidade


Como futura gerontóloga e psicanalista, percebo que a memória corporal não se extingue com a idade; ela se deposita, camada sobre camada, tecendo o modo como envelhecemos. A longevidade de qualidade não é apenas ausência de doença: é a capacidade de autorregulação, de sentido, de vínculos sustentadores. Memórias precoces de segurança ou de ameaça modelam a trajetória da regulação ao longo da vida, influenciando o estresse crônico, a saúde cardíaca, o sono e o bem-estar emocional; todos fatores centrais para o envelhecimento saudável. Reconhecer, na prática clínica e nas políticas de saúde, que as sementes do envelhecimento também se plantam muito cedo, amplia a visão de prevenção e cuidado ao longo da vida.


O corpo é um diário que começa a ser escrito antes de encontrarmos palavras. As marcas somáticas do início da vida; moldadas por hormônios, ritmos, relações e contextos; nos acompanham. Elas aparecem como tensões, sintomas, modos de sentir. A boa notícia clínica é que existe possibilidade de reinscrição: por meio de relações que regulam, práticas que integram corpo e mente, e narrativas que dão sentido, podemos costurar de novo o tecido das memórias.


Na prática da psicanálise, da gerontologia e da saúde comunitária, isso significa atuar não apenas sobre sintomas isolados, mas sobre histórias corporais que pedem escuta. Significa também investir em políticas públicas que protejam a gestação, apoiem a saúde mental materna e promovam ambientes de trabalho que reconheçam os efeitos do estresse acumulado. Cuidar de quem cuida é, portanto, gesto ético e preventivo: é tecido social. Lane é psicanalista, escritora e pesquisadora do campo da Gerontologia. Autora de “Fios da Vida: memórias alinhavadas com palavras”, dedica-se a investigar as tramas entre corpo, memória e escrita como caminhos de cuidado e reconstrução psíquica.



Referências Bibliográficas

  • Lautarescu A, Craig M, Glover V. Prenatal stress: Effects on fetal and child brain development. Neuroscience & Biobehavioral Reviews. 2020. PubMed

  • McGuinn LA, et al. The Influence of Maternal Anxiety and Cortisol during Pregnancy on Infant Development. Frontiers / PMC. 2022. PMC

  • Miranda J, et al. Maternal stress and fetoplacental cortisol regulation in small ... Ultrasound Obstet Gynecol. 2025. obgyn.onlinelibrary.wiley.com

  • Repetto C, et al. The neuroscience of body memory: Recent findings and ... Neuroscience & Biobehavioral Reviews. 2023. PMC

  • Parma C, et al. Does Body Memory Exist? A Review of Models ... Brain Sciences. 2024. MDPI

  • Van der Kolk B. The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Penguin Books, 2014. PMC+1

  • Porges SW. Polyvagal Theory: Current Status, Clinical Applications, and ... (review). PMC/Frontiers. 2022–2025. PMC+1

  • Schore AN. Attachment, affect regulation, and the developing right brain. (capítulo/artigo). 2001. allanschore.com

  • Winnicott DW. The Theory of the Parent-Infant Relationship. Int J Psychoanal. 1960. tcf-website-media-library.s3.eu-west-2.amazonaws.com

  • Stern D. The Interpersonal World of the Infant. Basic Books, 1985. PagePlace

  • Riva G. The neuroscience of body memory: From the self through ... (review). 2018. ScienceDirect

  • Additional suggested readings sobre epigenética perinatal e desenvolvimento: artigos e revisões listados nas bases PubMed/PMC sobre "prenatal stress epigenetics" e "placental cortisol regulation". (Ver, por exemplo, as revisões identificadas acima). PubMed+1

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