Lane Lucena
“Regras Técnicas” Recomendadas por Freud
Atualizado: 20 de dez. de 2022

Ao longo dos seus trabalhos sobre técnica psicanalítica, mais consistentemente estudados e publicados no período de 1912 a 1915, Freud deixou um importante e fundamental legado para todos os psicanalistas das gerações futuras: as regras mínimas que devem reger a técnica de qualquer processo psicanalítico. Muito embora Freud as tenha formulado como “recomendações”, elas são habitualmente conhecidas como “regras”, talvez pelo tom pedagógico e um tanto superegóico com que ele as empregou nos seus textos.
Vale lembrar que, classicamente, são cinco essas regras:
A regra fundamental (também conhecida como a regra da livre associação de idéias);
A da abstinência;
A da neutralidade;
A da atenção flutuante; e
A do amor à verdade,
Tal foi a ênfase que Freud emprestou à verdade e à honestidade como uma condição sine-qua-non para a prática da psicanálise. Essas regras permanecem vigentes em sua essencialidade, porém vêm sofrendo muitas e significativas transformações, por meio de algumas rupturas epistemológicas e inevitáveis mudanças que sucessivamente vêm se processando no perfil do paciente, do analista e da própria ideologia do processo analítico, com óbvias repercussões na prática clínica.
Não devemos confundir ter amor às verdades com um desejo de certeza. Em nosso mundo relativo, toda certeza absoluta é uma mentira. Muito mais do que ser um obsessivo caçador de verdades, o que importa é que sejamos pessoas verdadeiras. Nestes pouco mais de 100 anos de existência da psicanálise como ciência, entre avanços e recuos, ampliações e supressões, integrações e cisões, créditos e descréditos, acima de tudo ela vem sofrendo ininterruptas e profundas transformações, em que os sucessivos avanços na teoria repercutem diretamente na técnica, e a recíproca é verdadeira.
Regras Técnicas
Regra fundamental
Embora essa regra apareça clara e explicitamente formulada por Freud em dois artigos técnicos – A dinâmica da transferência e Sobre o início do tratamento, respectivamente de 1912 e 1913 (v. XII) –, ela já transparece bem delineada em 1904, em seu trabalho Sobre a psicoterapia.
Essa regra consistia fundamentalmente no compromisso assumido pelo analisando em associar livremente as ideias que lhe surgissem de forma espontânea na mente e verbalizá-las ao analista, independentemente de suas inibições ou do fato se ele as julgasse importantes ou não. O termo “fundamental” era apropriado porquanto não seria possível conceber uma análise sem que o paciente trouxesse um contínuo aporte de verbalizações que permitissem ao psicanalista proceder a um levantamento, de natureza arqueológica, das repressões acumuladas no inconsciente, de acordo com o paradigma vigente na época.
Como sabemos, nos primeiros tempos, na busca do “ouro puro da psicanálise”, contido na lembrança dos traumas psíquicos, Freud instruía seus pacientes no sentido de que contassem “tudo que lhes viesse à cabeça”, sem omitir nada (1909, p. 164), e, para tanto, forçava a “livre associação de ideias” por meio de uma pressão manual de sua mão na fronte do analisando. Posteriormente, ele deixou de pressionar fisicamente, porém continuava impondo essa regra por meio de uma condição obrigatória na combinação inicial do contrato analítico, assim como por um constante incentivo às associações de ideias no curso das sessões.
Tudo isso permite afirmar que a “associação livre” – componente principal da “regra fundamental” – não é encarada na atualidade como a única e tão fundamental forma de o analisando permitir um acesso ao seu mundo inconsciente. Ao mesmo tempo, ela evoluiu da ideia de uma imposição do psicanalista para a de uma permissão, com a finalidade de que o analisando fique realmente livre para recriar um novo espaço no qual ele possa voltar a vivenciar antigas experiências emocionais, pensar, sentir, muitas vezes atuar e, acima de tudo, silenciar ou dizer tudo que lhe vier à mente, no seu ritmo e à sua moda.
Regra da abstinência
Essa “recomendação de abstinência”, pelo menos de forma clara, foi formulada pela primeira vez por Freud, em Observações sobre o amor transferencial (1915, p. 214), em uma época na qual as análises eram curtas e na clínica dos psicanalistas predominavam as pacientes histéricas, que logo desenvolviam um estado de “paixão” e de atração erótica com o analista. A isso, acresce o fato de que, à medida que a psicanálise se expandia e ganhava em reconhecimento e repercussão, paralelamente também aumentavam as críticas contra aquilo que os detratores consideravam um uso abusivo e licencioso da sexualidade.
Preocupado com a imagem moral e ética da ciência que ele criara, além da científica, e com o possível despreparo dos médicos psicoterapeutas de então, quanto ao grande risco de envolvimento sexual com as suas pacientes mergulhadas em um estado mental de “amor de transferência”, Freud viu-se na obrigação de definir claros limites de abstenção, tanto para a pessoa do analista como também para a do analisando. Na verdade, Freud começou a postular essa regra a partir dos seus trabalhos técnicos de 1912, quando se intensificaram as suas preocupações com a imagem e a responsabilidade da expansão da psicanálise, porquanto, até então, ele mantinha uma atitude de muita permissividade, como pode ser comprovado com a análise, em 1909, do “homem dos ratos”, a quem Freud, em algumas ocasiões, no transcurso das sessões, servia chá, sanduíches ou arenque.
Tal como o nome “abstinência” sugere, essa regra alude à necessidade de o psicanalista abster-se de qualquer tipo de atividade que não seja a de interpretar, portanto ela inclui a proibição de qualquer tipo de gratificação externa, sexual ou social, a um mesmo tempo que o terapeuta deveria preservar ao máximo o seu anonimato para o paciente. Dessa forma, em 1918, no trabalho Linhas de avanço nas terapias psicanalíticas (p. 204), Freud reitera que, “na medida do possível, a cura analítica deve executar-se em estado de privação, de abstinência”. Fica claro nesse texto que Freud também se referia ao risco de que o analista atendesse às gratificações externas que o paciente busca, como um substituto dos conflitos internos.
Por essa última razão, Freud estendeu à pessoa do analisando a imposição de que ele se abstivesse de tomar qualquer iniciativa importante de sua vida sem uma prévia análise minuciosa da mesma. Na sua formulação original (pode ser encontrada na página 200 do volume XII), Freud afirma textualmente que “[...] protege-se melhor o paciente dos prejuízos ocasionados pela execução de um de seus impulsos, fazendo-o prometer não tomar quaisquer decisões importantes que lhe afetem a vida durante o tempo de tratamento, por exemplo, não escolher qualquer profissão ou objeto amoroso definitivo, mas adiar todos os planos desse tipo para depois do seu restabelecimento”.
É claro que essa recomendação continua sendo muito importante, especialmente quanto ao fato, de que a melhor forma de o analista atender ao seu paciente é a de entender as suas necessidades, desejos e demandas, única forma de evitar o risco de que essas sejam substituídas por actings, por vezes de natureza maligna
Tamanha era a preocupação de Freud com a possibilidade de o analista ceder à tentação de um envolvimento sexual com as pacientes que ele utilizou a metáfora de um radiologista que deve se proteger com uma capa de chumbo contra a incidência dos efeitos maléficos dos raios X. Sucessivas gerações de psicanalistas levaram essa recomendação ao pé da letra e, tal como a metáfora sugere, carregaram para o campo analítico essa pesada proteção plúmbea, de forma a manter-se o mais distante possível, de forma rígida, de qualquer aproximação mais informal, quer dentro quer fora do consultório.
Regra da atenção flutuante
Freud estabeleceu, como equivalente à regra fundamental para o analisando, uma também para o analista, a conhecida “regra da atenção flutuante”. Essa expressão, na Standard Edition brasileira, está traduzida ora como “atenção uniformemente suspensa” (1912, p. 149) ora como “imparcialmente suspensa” (p. 291).
De forma análoga a Bion – e antecipando-se a este autor –, em Recomendações... (1912), Freud postulou que o terapeuta deve propiciar condições para que se estabeleça uma comunicação de “inconsciente para inconsciente” e que o ideal seria que o analista pudesse “cegar-se artificialmente para poder ver melhor”.
Ao complementar essa regra de Freud, Bion argumenta que esse estado de “atenção flutuante” é bastante útil para permitir o surgimento, na mente do analista, da importante capacidade, latente em todos, de intuição (vem dos étimos latinos in + tuere, ou seja, “olhar para dentro”; uma espécie de “terceiro olho”), a qual costuma ficar ofuscada quando a percepção do analista é feita unicamente pelos órgãos dos sentidos.
Uma questão que comumente costuma ser levantada refere-se à possibilidade de o analista atingir a real condição de “cegar-se artificialmente” e despojar-se de seus desejos, da memória e de seus prévios conhecimentos teóricos. A resposta que me ocorre é que não há nenhum inconveniente que o terapeuta sinta desejos ou quaisquer outros sentimentos, assim como a memória de fatos ou teorias prévias, desde que ele esteja seguro que a sua mente não está saturada pelos aludidos desejos, memórias e conhecimentos.
Igualmente, é necessário que o terapeuta tenha uma ideia bem clara desse risco, de modo a que consiga manter uma discriminação entre os seus próprios sentimentos (pode ser um estado de expectativa da realização de desejos, como também pode ser o de uma apatia, medo, excitação erótica, tédio, sensação de paralisia e impotência, etc.) e aquilo que é próprio da situação analítica.
Regra da neutralidade
A abordagem mais conhecida de Freud a respeito dessa regra é aquela que consta em suas Recomendações..., de 1913, na qual ele apresenta a sua famosa metáfora do espelho, pela qual ele aconselhava aos médicos que exerciam a terapia psicanalítica que “o psicanalista deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não lhes mostrar nada, exceto o que lhes é mostrado” (p. 157). Freud representava essa recomendação como sendo a contrapartida da regra fundamental exigida ao paciente.
O termo “neutralidade” (deriva do étimo latino neuter que significa nem um, nem outro), embora designe um conjunto de medidas técnicas que foram propostos por Freud no curso de vários textos e em diferentes épocas, não figura diretamente em nenhum deles. Nas poucas vezes em que esse termo aparece nos escritos de Freud, a palavra original em alemão é indifferenz, cuja tradução mais próxima é “imparcial”, porém não vamos ficar indiferentes à possibilidade, não tão incomum, de que muitos terapeutas confundam um sadio estado mental de imparcialidade neutra com o de uma verdadeira indiferença, bastante deletéria para a análise, até mesmo porque muitos autores acreditam que a recomendação que Freud fazia acerca da neutralidade era tão rigorosa que o analista praticante era incitado a, de fato, manter uma indiferença.
Classicamente, essa regra refere-se mais estrita e diretamente à necessidade de que o analista não se envolva afetivamente com o seu paciente, tal como sugere a metáfora do espelho, já mencionada. Penso que essa comparação de Freud peca pelo inconveniente de fazer supor que ele recomendava que o analista deva se comportar na situação analítica exatamente como um espelho material, ou seja, como a fria superfície de um vidro recoberta com uma amálgama de prata, unicamente pesquisando, decodificando e interpretando mecanicamente. A partir da compreensão de que essa metáfora do espelho não podia ser levada ao pé da letra, pode-se dizer que a concepção da regra da neutralidade vem mudando substancialmente.
Hoje acredita-se que o analista deve funcionar como um espelho, sim, porém no sentido de que seja um espelho que possibilite ao paciente mirar-se de corpo inteiro, por fora e por dentro, como realmente ele é, ou que não é, ou como pode vir a ser! Além disso, também penso que o terapeuta deve se envolver afetivamente com o seu analisando, desde que ele não fique envolvido nas malhas da patologia contratransferencial, sendo que essa última condição de estado mental do analista é fundamental para possibilitar o desenvolvimento do analisando, tal como nos sugere a formação dessa palavra: desenvolvimento alude à retirada (des) de um envolvimento patogênico.
Regra do amor à verdade
Em diversas passagens de seus textos técnicos, Freud reiterou o quanto considerava a importância da verdade para a evolução exitosa do processo psicanalítico. Mais exatamente, a sua ênfase incidia na necessidade de que o psicanalista fosse uma pessoa veraz, honesta, verdadeira, e que somente a partir dessa condição fundamental é que a análise poderia, de fato, promover mudanças verdadeiras nos analisandos. Dessa firme posição de Freud, podemos tirar uma primeira conclusão: a de que mais do que unicamente uma obrigação de ordem ética, a regra do amor às verdades também se constitui como um elemento essencial de técnica de psicanálise.
Em relação ao compromisso com a ética, é oportuno incluir que também diz respeito à necessidade de o psicanalista não emitir julgamentos a respeito de terceiras pessoas, muitas vezes inclusive de colegas, tendo em vista que os pacientes os convidam para tal quebra de ética por meio de um inconsciente jogo sutil e provocador veiculado por intrigas, insinuações, proposição de negócios, envolvimento amoroso e afins.
Esta regra técnica inerente ao amor à verdade é parte de uma condição mais ampla na pessoa do analista – que vai muito além de unicamente uma capacidade para entender e habilidade para interpretar – podendo ser denominada atitude psicanalítica interna – e que, na contemporânea psicanálise vincular, assume uma importância fundamental, pois implica a indispensabilidade de demais atributos mínimos, como são os de empatia, de intuição, de rêverie e outros.

Uma outra regra: a preservação do setting
Além dos aspectos destacados, é inegável que um uso adequado das “regras técnicas” implica necessariamente a preservação do setting instituído. Como já foi visto, cabe ao enquadre a primacial função de normatizar, delimitar, estabelecer a assimetria (os lugares, os papéis e as funções do analista e do paciente não são simétricos), bem como a não-similaridade (eles não são iguais). Caso contrário, o analista tenderá a contra-atuar, e haverá uma confusão entre os lugares e os papéis de cada um dos integrantes do par analítico. Assim, também é função do enquadre manter um contínuo aporte do “princípio da realidade”, que se contrapõe ao mundo das ilusões próprias do “princípio do prazer” do paciente.
Todas essas considerações tecidas acerca da importância do setting como uma função ativa e determinante do processo analítico permitem concluir que, para o psicanalista, representa ser uma arte conseguir manter o setting preservado no que este tem de essencial, a um mesmo tempo em que ele não caia no extremo de um dogmatismo enrijecido ou na cega obediência aos cânones oficiais. Essa última condição é a única forma de ele propiciar um espaço de alguma flexibilidade e muita criatividade, para si e para o analisando. Indo mais além, coerente com a relevância atribuída ao enquadre do campo analítico, seria válido considerarmos a obrigatória “preservação do setting”, dentro dos limites assinalados, como sendo uma sexta regra técnica.
Como conclusão, pode-se dizer que assim como há a “violência da interpretação” – conceito de P. Aulagnier (1975), para quem a “violência” dos pais (ou do analista) tanto pode ser inevitável e estruturante quanto, também, excessiva, intrusiva e desestruturante – também há a violência da imposição de preconceitos e de regras técnicas universais, quando o psicanalista não leva em conta as peculiaridades pessoais de cada analisando e de cada situação analítica em particular.
(texto adaptado com base no capítulo 6: Uma Re-visão das “Regras Técnicas” Recomendadas por Freud, do livro: Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica)
Referências bibliográficas
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999. ZASLAVSKY, J e SANTOS, M.J.P. Uma Re-visão das “Regras Técnicas” Recomendadas por Freud.
Lane Lucena
∞ Mãe da Carol, psicanalista, apaixonada pelas palavras. Desenvolvedora da metodologia que floresce pessoas por meio da escrita: Flor&Ser