Quando o real dói demais: bebês reborn e o grito surdo da sociedade por Lane Lucena
- Lane Lucena
- há 20 horas
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Em vitrines, feiras e redes sociais, eles aparecem cuidadosamente embrulhados, trajando roupinhas delicadas e acompanhados de certidões de nascimento. Os bebês reborn — réplicas hiper-realistas de recém-nascidos — têm sido acolhidos por um número crescente de pessoas. Muitos os adotam, os alimentam simbolicamente, os colocam para dormir, fotografam e lhes dão nomes. Há quem se refira a eles como filhos. A pergunta que se impõe não é “por quê?”, mas “o que isso está dizendo de nós?”
Pela ótica da psicanálise, não se trata de um simples hobby ou fetiche estético. O fenômeno nos convida a escutar o inconsciente em ato: o desejo disfarçado, o vazio encenado, o sintoma vestido de bebê. Se um objeto inanimado pode ser investido de tamanha carga afetiva, é porque ele serve como suporte para algo que não encontra forma na linguagem — um trauma, uma ausência, uma dor que não foi simbolizada.
A psicanálise nos lembra que o sujeito se constitui na falta. Somos atravessados por perdas estruturais: a perda do paraíso da fusão com o outro, a perda da completude imaginária, a perda da onipotência infantil. No entanto, quando essas perdas não são suficientemente elaboradas, o sujeito pode buscar, compulsivamente, formas de remendá-las — mesmo que de maneira ilusória.
O bebê reborn não chora, não exige, não falha. Ele é um bebê ideal, moldado à imagem do desejo narcísico de um retorno ao tempo da ilusão. Adotá-lo pode ser, inconscientemente, uma tentativa de negar a castração simbólica: de voltar ao útero do mundo, onde tudo era previsível, controlado e sem dor. Há quem o busque após perdas gestacionais, abortos, traumas de infância, solidão profunda. Mas também há quem o adote não por luto explícito, e sim como resposta a um mal-estar que ainda não ganhou nome.
Nesse gesto, há um grito surdo que reverbera no tecido social: vivemos em tempos de hiperexigência, vínculos líquidos e um esvaziamento crescente da experiência simbólica. A maternidade real é cercada de ambivalências, falhas, frustrações. Já o bebê reborn oferece a promessa de um afeto sem conflito. É a imitação do vínculo, a estetização do cuidado, a ilusão de presença.
O que se revela, no fundo, é um desamparo contemporâneo. A sociedade que exalta a performance, a produtividade e o consumo estão cada vez mais inábeis em lidar com o imprevisível da vida psíquica. Em vez de nomear a falta, tenta-se preenchê-la com objetos. Mas a falta não se resolve — ela se escuta, se acolhe, se escreve.
O bebê reborn, então, é mais do que um boneco: é um sintoma coletivo. Um espelho do vazio que tentamos negar. Um chamado para que possamos, finalmente, nos perguntar: o que está faltando quando uma imitação de vida se torna mais suportável do que o real? O que a sociedade está gritando com esse gesto silencioso? Vivemos tempos de desamparo disfarçado de autonomia. Quando o real dói, buscamos representações. O bebê reborn se torna um espelho do que falta: vínculos reais, escuta, acolhimento do inacabado.
Em vez de negar a falta, precisamos escrever sobre ela. Porque há dores que só a linguagem pode conter.
E você? O que faz quando o vazio aparece?
Lane Lucena, psicanalista, desenvolvedora da Metodologia das cartas Flor&Ser - que utiliza a escrita expressiva como recurso terapêutico e de florescimento humano. Escritora do livro: Fios da Vida - Uma colcha de memórias alinhavadas com palavras. Mãe da Maria Carolina. Apaixonada pela vida, amo viajar, estudar e ler. Graduanda em Gerontologia, pós-graduada em comportamento organizacional e gestão de pessoas e em TEA - Transtorno do Espectro Autista, com especializações em psicopedagogia clínica e psicologia e saúde mental. Minha maior paixão é o autoconhecimento. Idealizadora do Psiqueanalise.com desde 2017.
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